quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Velório, em algumas regiões de Minas Gerais, ainda é um acontecimento social.

Receitas do outro mundo

por: Margarete Azevedo
Velório, em algumas regiões de Minas Gerais, ainda é um acontecimento social. Livro traz histórias e receitas de quitutes servidos aos “convidados” nessas ocasiões
A única diferença dos festejos de Finados dos mexicanos é que eles usam pimenta demais da conta nos seus comes e bebes. No mais, moradores de algumas regiões de Minas Gerais não se acanham nem um pouco em degustar pão de queijo, “caldim” de feijão, lombo de porco com mandioca, bem “pertim” de quem se foi desta para melhor. Essas iguarias, acrescidas de Ambrosia Preta e Amor aos Pedaços de sobremesa, fazem parte do cardápio de “guardar” defuntos, conforme relata Déa Rodrigues da Cunha Rocha, 79 anos, no livro Os Comes e Bebes nos Velórios das Gerais e Outras Histórias. Editada pela Auana, a obra traz, além de receitas, 18 “causos” reais, muitos deles ocorridos nesses eventos.
Com texto leve e boas pitadas de humor, o livro dessa mineira de Uberaba surgiu por acaso, a partir do interesse em conservar as receitas da família e das amigas. Criada em fazenda, ela tomou gosto pela culinária graças à avó e a uma tia, quituteiras de mão cheia. Há alguns anos, constatou que as velhas cozinheiras estavam morrendo, e com elas também estavam sendo “enterradas” as preparações de diversas iguarias da quitanda mineira. “Na época, eu cursava Direito na Universidade de Uberaba. As pessoas me davam receitas de biscoitos, broas, pão de queijo e, além disso, me contavam histórias malucas ocorridas em velórios. Eu comecei a registrá-las.”
Depois de formada em filosofia, Déa casou-se e morou um longo período na capital paulista. Com o propósito de concluir um projeto iniciado com o marido, já falecido, ela voltou às terras mineiras. Para ocupar a mente, prestou vestibular para Direito, formando-se em 2005. Nos últimos dois anos do curso, percorreu a região central de Minas e o Triângulo Mineiro, com o intuito de reunir as receitas de muitas guloseimas. “Conversa vai, conversa vem, ouvia os relatos do que havia sido oferecido no velório de fulano, sicrano, beltrano”.

Sensualidade

De volta a São Paulo, a advogada passou a se dedicar à organização das receitas e dos relatos, já imaginando a possibilidade de publicar um livro. Para preservar a imagem de muitos personagens da obra e de possíveis implicações legais, ela realizou uma cuidadosa pesquisa de nomes. Na edição, todos foram substituídos; afinal, as histórias são verídicas e muitas pessoas retratadas ainda estão vivas.
Déa foi capaz de unir a ingenuidade característica do povo mineiro, inclusive, com pitadas de sensualidade em alguns dos contos, por exemplo, em “As despedidas”. Na história, o viúvo perde a cabeça durante o velório, levanta a saia da mulher e alisa as pernas da falecida. Sequer ouviu os apelos do filho, que tentava em vão fechar o caixão para minimizar o comportamento do pai. Já no conto “Ambrosia Preta”, o homem morre com desejo de comer o doce e de deitar-se com a companheira. “Ambrosia Preta é bom demais. O marido dela tinha razão em querer comer a sobremesa”, emenda.
Embora possa parecer curiosa a comilança nos velórios, a autora lembra que os comes e bebes já fazem parte dos rituais fúnebres há mais de 50 anos. “Hoje, o costume resiste no interiorzão, nas cidades pequenas. Eu sempre brinco, que o defunto nem soprou a vela, nem morreu direito e já estão correndo atrás de uma galinha no quintal. Faz parte da hospitalidade do mineiro. Para eles, as pessoas que vão ao velório merecem ser bem tratadas.” É a forma que têm de agradecer a gentileza dos que passam a noite velando o defunto deles. Nessas ocasiões, não faltam o caldinho de feijão, a pinguinha, as broas, os biscoitos, as rosquinhas. A tradição envolve até eventuais comparações sobre qual velório tem a melhor quitanda.
Vinte e uma receitas dessas quitandas e de outros quitutes estão presentes no livro Os Comes e Bebes Nos Velórios das Gerais e Outras Histórias, inclusive, o famoso caldinho de feijão e os tradicionais pãezinhos de queijo. Todas as receitas foram testadas pessoalmente por Déa, que contou com a colaboração de Geraldo, um antigo cozinheiro da família. “As receitas mineiras antigas são muito malucas, porque não apresentam peso, nem a medida de líquido direito. Durante muitas gerações, eram transmitidas de boca em boca. Falava-se em punhados de fermento, pratos fundos, meio cheios ou rasos”, comenta. Evidentemente, isso dificultava o preparo de uma receita.

Nomes curiosos

Receitas do outro mundo De tanto errar nas medidas e passar do ponto, a dupla conseguiu chegar às medidas tradicionais. Déa garante que todas as receitas do livro podem ser feitas em casa. Mas as que levam polvilho podem ficar comprometidas devido à qualidade do ingrediente. “O Cascudo, por exemplo, é um biscoito alucinantemente bom, mas é trabalhoso e leva polvilho artesanal. Eu costumo trazê- lo de Minas Gerais. Infelizmente, o polvilho que é vendido nos supermercados é bem diferente. Isso interfere no resultado. O meu filho adora cozinhar e ficou doido: ‘Mamãe, parece pedrinha’. Ele pensou que tinha errado no ponto. Perguntei-lhe qual polvilho usou? Bastou para saber qual era o problema”, relata a advogada.
Segundo a autora, a culinária mineira tem muitas influências, porém, os doces são essencialmente portugueses, como a Brevidade e a Ambrosia, que levam muitos ovos no preparo. “A maioria das pessoas conhece e faz a Ambrosia no natural, a minha avó é que introduziu uma calda queimada, que confere cor moreninha ao doce”, acrescenta. Além disso, muitos dos quitutes da quitanda mineira têm denominações inusitadas, como Cueca Virada, Calcanhar de Negro, Pau a pique.
Apesar de ter pesquisado também a origem desses nomes, Déa não encontrou justificativa. “Eu desconheço a origem do Cueca Virada. O nome é usado de Goiás até o Rio Grande do Sul, porém, a massa varia. O bolo Mané Pelado, por exemplo, em Goiás é chamado de bolo de mandioca, mas no Triângulo Mineiro, os mais antigos o chamam de Mané Pelado.” Outra iguaria, cujo nome não faz jus à aparência, é o biscoito Calcanhar de Negro. “Quando o polvilho é bom, não tem erro. É um biscoito amarelinho, por isso o nome não tem lógica”, finaliza.
Receitas do outro mundo

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(Revista Kalunga)

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